Quadros dissociativos e abuso de substâncias químicas
Importante deixar claro que episódios de dissociação não são a mesma coisa de um
transtorno dissociativos propriamente dito.
Para que consideremos um conjunto de sinais e sintomas como um transtorno, é
necessário que tais alterações de percepção do mundo ao redor causem prejuízo
relevante ao curso da vida diária da pessoa.
Tais alterações devem também persistir por período suficiente, variável conforme os
sintomas e a apresentação em cada indivíduo em particular.
Posto isso, no que consiste um sintoma de dissociação?
Em linhas gerais, é a saída que a mente encontra para sair imediatamente de uma
situação considerada insuportável. É como se o cérebro “desligasse”, de forma transitória
e em geral rápida, por poucos minutos, causando sensação de “estar fora do corpo”,
“flutuar”, “sensação de desconexão” do corpo em relação ao que se passa ao redor.
Fundamental também salientar que devem ser descartadas todas as hipóteses de
etiologia orgânica, sobretudo da sensação transitória de ausência e de “cérebro
desligado”, afastando hipóteses diagnósticas de eventual etiologia orgânica de outra
ordem, a exemplo das eplepsias.
Tais descrições sintomatológicas podem ser mais frequentes do que se imagina,
possibilitando contextualizar tais manifestações dissociativas referidas pelos indivíduos às
situações de vida não necessariamente ligadas a um contexto psicopatológico. Dito de
outro modo, podemos pensar de que forma as manifestações de dissociação podem estar
relacionadas a um fenômeno do tempo em que vivemos.
A dissociação, pelas suas características enquanto alteração formal de juízo de
percepção e juízo de realidade, existe para fazer frente a situações percebidas como
ameaçadoras, deletérias e, de maneira geral, difíceis de suportar pelo sujeito que as
vivencia.
Sendo assim, para fazer frente à tal situação aversiva, o corpo (para além do cérebro)
encontra maneiras de “evadir-se” da situação que provoca tamanho desconforto. Daí a
referida sensação de despersonalização, de sentir-se “fora do corpo”, entre outras
conforme supracitado. É possível entender tais manifestações como uma maneira adaptativa e até salutar de preservação contra a realidade com a qual não se consegue
lidar.
Tal estado de coisas guarda estreita relação com o uso abusivo de substâncias
psicoativas, como álcool e maconha, por exemplo.
Uma vez que o abuso de substâncias psicoativas vem a serviço de alterar a percepção da
realidade, atenuando e “enevoando” a atmosfera vivida pelo indivíduo, tal finalidade vem
ao justamente ao encontro da necessidade de possibilitar essa evasão, essa “fuga” das
situações entendidas como insuportáveis pelo indivíduo, variando conforme a história de
cada um, como nunca é demais lembrar. As pessoas são diferentes, têm vidas e
realidades diferentes, e não sofrem pelas mesmas coisas, muito menos da mesma forma.
Na clínica é comum encontrar relatos de pessoas vivenciando sintomatologia descrita
como dissociativa. Frequentemente ligada justamente à essa necessidade de “desligar a
cabeça”, de modo transitório.
Substâncias psicoativas têm o mesmo papel. Modificar, distorcer, alterar a percepção e a
vivência da realidade e do mundo ao redor.
Assim sendo, tendo em vista a redução de danos, na qual se preconiza que a pessoa
tenha a possibilidade de escolher por si mesma os caminhos de sua vida, e entender em
maior profundidade os motivos e razões os quais o levam a querer usar a substância,
entender o porquê sentem vontade de se alijar, se afastar, se alienar da dor, podemos
pensar a relação entre os sintomas dissociativos e o uso abusivo de substâncias
psicoativas.
Mais eficaz do que lutar cegamente contra o uso de tais substâncias parece estar
problematizar frontalmente junto ao usuário numa conversa franca e aberta sem nenhum
viés de julgamento ou punição, as motivações que levam a buscar, afinal, sair do corpo,
desligar a mente, afastar-se de si.
Tratar com sensibilidade e respeito tais situações parece ser uma forma coerente de
oferecer apoio e compreensão. Dissociação e abuso de substância podem ser vistos
como uma solução a uma realidade insuportável e não um desvio de caráter ou qualquer
caráter imoral.
Se você conhece alguém que já se queixou dessas sensações, recomende buscar ajuda
especializada. Melhor qualidade de vida é para todos, sempre.