Canabinóides e seu uso medicinal (2)
No nosso texto anterior, portanto, pudemos nos debruçar sobre as diversas imprecisões que circundam o tema do uso medicinal de canabinoides. Agora podemos nos debruçar sobre o que realmente interessa, que é a aplicação deste uso medicinal em si.
O primeiro assunto que gostaria de abordar é o da realidade atual num sentido bastante prático. O uso medicinal dos canabinoides já é uma realidade no Brasil, embora, como veremos a seguir, em um escopo bastante limitado.
A ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que é o órgão regulador do uso de substâncias para fins terapêuticos, já autoriza expressamente a importação do canabidiol e outros canabinoides para uso terapêutico mediante prescrição médica.
Essa autorização é relativamente ampla. Existiria espaço para o uso tanto do canabidiol isolado quanto do canabidiol em associação ao THC (tetraidrocanabinol, canabinoide encontrado atualmente em plantas do gênero cannabis, e responsável pelo “barato” da maconha), inclusive com medicamentos possuindo maiores concentrações de THC.
A própria planta in natura entrou no rol de plantas medicinais, embora a regulamentação do seu plantio ainda esteja em discussão, provavelmente sendo limitado a laboratórios de pesquisa.
O maior fator limitante para o uso medicinal atual é o balizado pelas resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), que limitam a prescrição do canabidiol para casos refratários de epilepsia na infância (CFM 2113/14).
A autorização para a prescrição do canabidiol nestes casos deve encontrar justificativa no chamado uso compassivo: para pacientes que continuam tendo um quadro grave e incapacitante mesmo após esgotadas todas as alternativas de tratamentos convencionais. Não é incomum que sejam permitidas tentativas de tratamento alternativas com evidências ainda incipientes.
Uso medicinal: o que se sabe?
O assunto nos leva, então, ao segundo ponto importante para discussão do assunto: o que se sabe atualmente a respeito do uso medicinal de canabinoides?
Sinto informar que a resposta é pouco categórica. Existem algumas áreas que indicam um uso promissor, mas, até o momento, não temos um corpo de evidências conclusivo positivamente em nenhuma área.
A área onde os estudos estariam mais avançados seria justamente a de alguns tipos de epilepsia graves na infância e na adolescência. São patologias graves e relativamente raras, o que acaba limitando também a realização de estudos científicos mais robustos.
Os relatos de casos tratados apontam resultados sóbrios, mas geralmente positivos: crianças que tinham, por exemplo, 40 crises epilépticas ao dia mesmo na vigência dos melhores tratamentos convencionais preconizados teriam a frequência de suas crises reduzidas para, por exemplo, 15 ou 20 crises/dia após o uso do canabidiol.
Aqui, uso a diminuição da frequência das crises apenas para ilustrar um parâmetro mais palpável. A diminuição da gravidade das mesmas também já foi relatada. Um quadro certamente grave, ainda, mas também apresentando uma melhora significativa em relação ao quadro de base.
Vale ressaltar que até o momento não existe nenhuma orientação para o uso de canabinoides como primeira linha no tratamento de epilepsias de qualquer natureza em qualquer faixa etária. Os resultados para epilepsias que não estas graves são, até o momento, pouco animadores. Embora o futuro próximo possa reservar surpresas, qualquer previsão neste sentido não passa de mera especulação.
Indo para algumas outras patologias, temos também alguns resultados promissores sobre o uso de THC ou mesmo maconha in natura como antiemético e também como regulador de apetite.
Os resultados mais uma vez são incipientes, algumas séries e relatos de caso de pacientes, sobretudo oncológicos, que, fazendo uso de maconha, THC ou algum canabinoide sintético tiveram melhora dos sintomas de náuseas e vômitos relacionados a tumores ou à quimioterapia.
Especificamente no campo da Psiquiatria, estes resultados poderiam apontar para um campo promissor no uso de canabinoides em transtornos alimentares, como anorexia nervosa ou bulimia nervosa, em que pacientes apresentam restrição na ingestão de alimentos e comportamentos purgativos (na forma de vômitos, por exemplo), ou mesmo na inapetência observada em quadros depressivos.
O campo ainda se encontra largamente inexplorado, no entanto, o que nos coloca, neste momento, numa posição de aguardar o que virá no futuro.
Outros campos de atuação
Evitando tornar o texto exaustivo, esgotados os dois campos de atuação médica geral principais, epilepsia e regulação de apetite, farei um apanhado dos campos da saúde mental onde os resultados parecem apontar a possibilidade de achados positivos no futuro.
Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos: Já existe um corpo de evidências vasto correlacionando o uso de maconha na adolescência com o aparecimento de sintomas psicóticos.
Alguns dados mais refinados sugerem que o uso de maconha com concentrações de THC maiores (como o skunk) apresentariam mais risco para o aparecimento destes quadros, e que a desproporção THC/CBD nestes casos seria o responsável pelo aparecimento destes sintomas. (CBD: Canabidiol, canabinoide encontrado naturalmente em plantas do gênero cannabis. Atualmente é o que vem apresentando resultados mais promissores em termos de uso medicinal).
No entanto, embora o modelo teórico acima descrito aponte para a possibilidade de algum resultado promissor no futuro, ainda não houve nenhum estudo que tenha sido capaz de provar de forma inconteste que o uso isolado de CBD para pacientes psicóticos tenha sido capaz de gerar benefícios palpáveis.
Transtorno de Estresse pós-traumático: Sabe-se que a maconha possui efeitos negativos sobre a fixação de memória. Alguns estudos buscaram verificar se o uso de maconha ou canabinoides logo após um evento traumático poderia arrefecer a fixação daquela memória negativa, diminuindo portanto a chance de um indivíduo desenvolver o chamado Transtorno de Estresse Pós-Traumático após eventos como combates em guerra, assaltos, etc.
Até o momento, mais uma vez, as evidências são pouco conclusivas: parecem haver alguns benefícios neste sentido, mas o uso da maconha e/ou canabinoides também gerou prejuízos em funções cognitivas (como, naturalmente, a fixação de memória em um sentido mais geral, mas também a velocidade de raciocínio, etc.) e executivas.
De maneira geral, tanto na Psiquiatria como em outros campos da Medicina, os resultados positivos são contrapostos a potenciais negativos do uso de canabinoides. É necessário que se entenda que o uso de qualquer substância, psicoativa ou não, pode possuir um potencial de benefício terapêutico, mas deve este vir ao custo de efeitos colaterais e/ou prejuízos a longo prazo, independentemente da origem natural ou sintética da mesma.
Caso algum leitor queira me perguntar se eu lançaria mão do uso de algum canabinoide para uso terapêutico em meu consultório, minha resposta seria: no momento, não.
Não tenho nenhum preconceito contra os canabinoides, mas, até o momento, nenhuma evidência científica me deixou convencido dos benefícios do uso destas substâncias na minha prática clínica como psiquiatra.
Espero, no entanto, sinceramente, que achados científicos possam me provar o contrário no futuro.