Anorexia e Bulimia nervosas: uma compreensão psicanalítica.
No texto anterior falamos sobre compulsão alimentar, um dos transtornos alimentares mais apresentados por pacientes.
A ideia agora é falarmos sobre outros que também fazem parte desta classe e causam prejuízos severos à saúde: a bulimia e a anorexia.
Aproximadamente 90% dos casos são de mulheres jovens, porém, recentemente está havendo um aumento no número de transtornos em homens e em adultos de ambos os sexos. Esses transtornos atingem entre 1 e 4% da população e seguem aumentando em frequência significativamente nos últimos anos.
A anorexia nervosa é caracterizada por um comportamento de restrição alimentar severo, muitas vezes combinado com exercícios físicos intensos e/ou técnicas purgativas, isto é, indução de vômito, uso de laxantes ou diuréticos como tentativa de acelerar o processo de emagrecimento.
Já a bulimia nervosa é definida por episódios de compulsão alimentar ou binge eating (ataque desenfreado à comida), seguidos de comportamentos de purgação, como forma de compensar a ingesta calórica excessiva.
A bulimia difere do tipo purgativo da anorexia pelo fato de, entre outros fatores, o sujeito não apresentar emagrecimento extremo. Ainda assim, em alguns casos, o bulímico pode realizar períodos longos de jejum ou se exercitar excessivamente.
A grande maioria das pessoas já ouviu falar destes transtornos ou até mesmo já teve contato com alguém que teve ou tem bulimia ou anorexia nervosas. Portanto, buscarei fugir do senso comum e discutir o tema a partir de uma compreensão psicanalítica.
A relação sujeito X comida pode ser compreendida e interpretada de diferentes formas. Existe tanto uma referência estética quanto psicossocial da imagem do corpo. A comida, além de alimento para o sustento de todos, é também um complexo de identificações positivas e negativas se compreendendo genealogicamente.
A satisfação oral, segundo a teoria de Freud, faz parte da história mais primitiva do ser humano, cujo desvendamento psicopatológico está centrado nos investimentos primitivos do intercâmbio alimentar, na relação objetal. A primeira de todas elas é a do bebê com o seio materno, a qual Freud chamou de primeira forma de vinculação. (Kelner, 2004).
De acordo com Melanie Klein, o que determina a relação do sujeito com seus objetos são suas necessidades físicas, impulsos e fantasias. Esta relação varia de acordo com as sensações proporcionadas por este objeto, sejam boas ou ruins. O bebê imagina o objeto como fazendo parte dele, vivendo através dele e para ele; e assim permeia todo o processo de desenvolvimento libidinal da criança. Assim ficou conhecida a expressão “seio bom/mau”. O seio ou o objeto bom é aquele que tem bom sabor e dá prazer à boca. Já o mau é o que frustra, tem um mau sabor e não é bem aproveitado.
De acordo com as ideias kleinianas, haveria tendências para a criança usurpar o “bom objeto”, incorporando suas qualidades, e projetar as qualidades do “mau objeto”, ou seja, introjetar o que é agradável e projetar (atribuir a outra pessoa ou objeto) o que é desagradável.
Segundo Ferenczi, o primeiro amor e o primeiro ódio realizam-se graças à transferência, as primeiras sensações de prazer/desprazer, inicialmente auto-eróticas, deslocam-se para os objetos que as suscitaram. O bebê, inicialmente, gosta da sensação de saciedade, depois passa a gostar do objeto que lhe proporciona a saciedade. “Considero qualquer amor objetal ou qualquer transferência como uma extensão de ego ou introjeção. Em ultima análise, o homem pode amar apenas e unicamente a si mesmo: amar a um outro equivale a integrar este outro a seu ego. É esta união entre os objetos amados e nós mesmos, esta fusão dos objetos com o nosso ego, que chamei de introjeção e, repito, estimo que o mecanismo dinâmico de qualquer amor objetal e de qualquer transferência sobre um objeto é uma extensão de ego, uma introjeção” (Ferenczi, 1912).
Vale diferenciar introjeção e identificação, em que a primeira diz respeito a um processo e a segunda a um mecanismo de assimilação e englobamento de uma parte do objeto (a mãe) no narcisismo primário do sujeito.
Mas o que isso tem a ver com os Transtornos Alimentares? Eles se originariam nesta fase, na qual provavelmente o bebê vivenciou uma ruptura e um sentimento de falta em decorrência da separação no nascimento, do processo de desmame e o afastamento da mãe, envolvidos na elaboração da subjetividade do sujeito. Ela se dá pelo vazio criado com a perda do objeto primordial. Em alguns casos, em que não ocorre esta interioridade, a atividade libidinal é excluída da cadeia simbólica, provocando prejuízos irreparáveis. A relação com a mãe torna-se uma relação ‘tranquilizante’, sendo um facilitador para a compulsão, numa tentativa de suplência da falta”.
É inegável que em pacientes com anorexia e bulimia nervosas há uma distorção corporal evidente. Por mais magra que a pessoa esteja, ela ainda se enxerga gorda. A anorexia teria uma ligação com a histeria ou um perfil paranoide. Ferenczi acreditava que o ego da anoréxica estaria aparentemente contraído, rejeitando alimentos, cuidados, tudo lhe parecendo persecutório e destruidor, rejeitando também possivelmente a feminilidade. Quando recusam o alimento e chegam à inanição, qualquer tentativa de alimentá-las no hospital é recusada.
Segundo Kafka “a esquelética magreza do jejuador provinha de seu descontentamento consigo mesmo….”. O jejuador, contraposto à sua necessidade de jejuar, sem parar, se articula à única forma possível de satisfação. Jejuar e exibir o jejum e suas conseqüências, “fanaticamente enamorado da fome. A interrupção do jejum através da introdução da sonda nasogástrica seria excluir a paciente de sua glória… o que ela não admitiria jamais”.
A Medicina trata o sintoma… A Psicanálise interpreta o sintoma como uma defesa, uma saída patológica. A Medicina quer corrigir a anorexia e a desnutrição, “impedindo” a morte. A Psicanálise quer compreender o que significam.
Paul Laurent Assoun, em “Freud e a Mulher”, vê a anorexia como uma síndrome histérica que expressa enfaticamente algo de característico da feminilidade. A anoréxica “apresenta um espetáculo que responde à perplexidade de Freud, já que, em sua pretensão fantasística, ela é aquela que, por excelência, sabe o que quer”. Porém, o que ela ignora é que esse querer determinado sustenta uma negação do desejo. Deste modo essa estrutura neurótica traz um traço de perversão na marca mesma de uma Verleugnung (renegação).
“O querer garante a presunção do saber absoluto, mas esse corpo subjugado constitui uma barreira para algo que não quer se expressar, que é o desejo pelo outro” (Assoun, 1993: 118). Renegação da sedução: desencanto e ausência de sexualidade. “Se a histérica, na sua paródia enganadora do convite sexual, com sua dança aliciadora, debate-se com a sedução e a utiliza como uma armadilha para submeter os homens, a anoréxica recusa-se a isso” (Bidau, 1998: 75).
Segundo Rizzuto, a paciente anoréxica subtrai o sabor dos alimentos, o aroma do perfume e o sentimento da vida. Enfim, ela, destitui todos os objetos, animados e inanimados, dos seus atributos, de suas funções. Nas crises bulímicas ela, ao mesmo tempo que procura preencher o seu vazio interior com selvagem voracidade, pretendendo que aquele alimento lhe traga bem-estar, imediatamente o reconhece como destrutivo, mau, e tenta expulsá-lo com a mesma “selvageria”. A voracidade com que come o alimento é proporcional ao ódio com que vomita.
A compreensão dos transtornos alimentares variam e se complementam dependendo do autor estudado. Em todas elas existe um ponto comum: a nocividade dos Transtornos Alimentares. O diagnóstico precoce pode aumentar as chances de sucesso no tratamento. Portanto, procure um profissional!