A Revolução do Estar Só
Entendido soberanamente como um ser social, o ser humano passa a vida se relacionando com os outros, em maior ou menor medida estabelecendo redes sociais muito antes mesmo dos adventos tecnológicos desenvolvidos com a globalização, onde não só é possível estar com os outros, como a distância geográfica passou a não ser mais um impeditivo à comunicação e troca cultural.
Diante disso, acaba-se esquecendo ou mesmo refutando uma reflexão tão importante quanto básica: O ser humano nasce só e morre só.
Tal constatação não há de ser necessariamente um fato sombrio.
É concreto que a experiência de habitar seu próprio corpo e sua própria experiência de existir é pessoal e intransferível. Você e só você tem a exata noção do que é ser você, ainda que não pare para dar-se conta disso com muita frequência.
Conta-se apenas com sua própria consciência acerca do estar no mundo, e das coisas que se passam nele.
O constructo do filósofo René Descartes que cindia o humano em corpo e mente mostra-se muito frágil quando pensada sob algumas perspectivas.
O corpo, ao mesmo tempo forte e frágil como é, consiste no locus da existência humana. Através dele e por seu filtro tomamos contato com tudo o que se passa. E essa experiência é, como dito, única para cada um.
A fim de estabelecer trocas com o outro, o homem se utiliza dos artifícios da linguagem, da qual faz parte todo um sofisticado aparato composto por aparelho fonador, sistema nervoso, sistema muscular, entre outros, cria sons, que por sua vez criam palavras, que se
transformam em símbolos e tornam fluida o que chamamos de comunicação.
A comunicação cria pontes entre as subjetividades dos seres. E até por isso mesmo esla está sujeita aos ruídos, equívocos e falhas de interpretação, onde você pode até saber o que disse, mas jamais poderá saber o que o outro escutou.
Pensar a respeito do “estar só” propõe que, para viver bem, não é necessário estar “junto com”, a exemplo dos grupos de amigas adolescentes indo juntas ao banheiro, fase na qual o comportamento gregário é constitutivo e notório.
Esse exemplo se estende às próximas fases da vida, nas quais o homem segue buscando seus pares para toda e qualquer atividade que exerça. O futebol, o trabalho, o casamento. Abstraindo ainda mais, gera o efeito de manada.
Assim, numa realidade em que se busca o mais possível aglutinar-se , o estar só se torna uma forma de revolução. Uma subversão da ordem. A revolução do estar só. De não formatar-se às medidas preexistentes, como a “sacrossanta família”, cujo objetivo é deixar através da prole o registro no livro do eterno devir.
Subvertendo tal ordem, nascem todos os outros demais arranjos posíveis. Admitindo a ideia de estar bem estando só, paradoxalmente torna-se possível ser melhor estando junto.
Relações mais profundas nascem quando cada um se encontra mais integrado, mais sólido.
Estar só permite pensar pela sua própria cabeça, formar suas próprias ideias. Em alguma medida, o real pensamento é profundamente solitário. Um insight.
O real pensamento nasce sozinho , para depois poder ser partilhado com os outros, recebendo estímulos e influências externas, que modificam e às vezes até enriquecem seu conteúdo, agregando válidos pontos de vista.
A identificação, requisito básico das agremiações, levam embora a singularidade.
Na multidão não se faz necessário pensar, basta replicar. Cria-se um jogo de espelhos no qual a solidão não se sustenta.
Compartilhar a possibilidade de estar só como sinônimo de algo bom e necessário é um ato de respeito à singularidade.
Ouvir o outro e ao mesmo tempo participar dessa escuta, estabelecendo cortes e limites que também fazem parte da comunicação.